O mundo dos esports está passando por seu próprio #MeToo — finalmente

Para muitas mulheres do mundo dos esports, não é nenhum choque; é a confirmação de uma realidade escondida.

Foto via Riot Games

Muitas vezes, o mundo dos esports é visto como uma cena onde há aceitação incondicional. É uma fonte de consolo para os nerds e gamers rejeitados por outras comunidades, que finalmente têm a chance de conseguir sucesso com base apenas em seu talento e trabalho, seja em competições de fato ou nas muitas outras carreiras que agora existem na indústria.

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Infelizmente, esse mundo idílico não é a realidade de todos nós.

Desde 20 de junho, dezenas de mulheres da comunidade dos esports, games e streaming vêm compartilhando suas histórias pessoais de assédio e abuso sexual. As histórias se passam em diferentes empresas, jogos, plataformas e épocas. É um lembrete deprimente de que o problema é generalizado na comunidade dos esports. 

A lista quase infinita de relatos detalhados e horrendos chegou até ao New York Timesque comentou o impacto das acusações na comunidade dos games e do streaming. Para muitas mulheres da indústria, o clima é de decepção e resignação, não de choque. A luz quase invisível no fim do túnel é que as organizações podem finalmente fazer alguma coisa (literalmente, qualquer coisa) como resposta ao que está acontecendo.

Uma enxurrada de acusações

A série de relatos do final de semana começou com acusações a SayNoToRage, também conhecido como Lono, que faz parte da comunidade de streaming de Destiny 2. Quando mais de cinco mulheres corroboraram as acusações originais, mais histórias das cenas de games e esports começaram a aparecer.

Diversas mulheres se pronunciaram sobre o apresentador e streamer de Dota 2 Grant “GranDGranT” Harris com relatos de assédio sexual. Molly Fender Ayala, líder de desenvolvimento da comunidade de Overwatch, acusou Omeed Dariani, CEO do Online Performers Group, de conduta inapropriada. Várias mulheres acusaram o roteirista Chris Avellone, que trabalhou na série Fallout e em Dying Light 2de importunação sexual. Uma ex-funcionária relatou que Ryan Morrison, CEO da Evolved Talent, teve diversos casos de conduta inapropriada, incluindo alugar um quarto compartilhado de hotel para os dois, com apenas uma cama. E uma mulher revelou que prestou queixas contra o apresentador Bil “Jump” Carter por estupro em 2019.

Esses são apenas alguns entre as centenas de relatos e experiências que as mulheres dos games e esports compartilharam no final de semana. Já é difícil acompanhar essa quantidade, mas a streamer Jessica Richey está trabalhando em uma lista que compila todos os casos que ela conseguir encontrar. A lista no Planilhas Google inclui, até o momento, 215 itens diferentes.

Dessas centenas de itens, ao menos alguns já tiveram como consequência medidas concretas das empresas. A Evil Geniuses cortou relações com Harris, que era seu apresentador. Dariani e Avellone se demitiram. A Evolved afastou Morrison até que uma investigação externa seja concluída, e a Esports Bar o demitiu.

E dezenas dessas acusações envolvem streamers e jogadores parceiros da Twitch. Isso levou uma onda de fãs nas redes sociais a exigir que a empresa tomasse providências. Em resposta, Emmett Shear, CEO da Twitch, compartilhou um email que enviou ontem a sua equipe. No email, ele pede desculpas por ter feito pouco caso de parceiros que abusavam de mulheres na plataforma, indicando que a Twitch seria um espaço mais seguro no futuro. Para muitos fãs, isso não foi suficiente, e diversos streamers decidiram interromper suas atividades na Twitch durante o dia de hoje, 24 de junho, em protesto.

Essa também não é a primeira vez que uma grande empresa no mundo dos jogos está relacionada a um caso de assédio sexual. Dezenas de funcionárias relataram ter sofrido discriminação e assédio na Riot Games, criadora de League of Legends e VALORANT. A Riot respondeu as acusações em um programa de entrevistas na televisão em 2019.

Para os que olham de fora, pode parecer que uma mulher corajosa causou um efeito dominó de histórias saindo das sombras. Apesar de ser verdade que um ato de coragem inspira outros, o final de semana só mostrou um pouco do que acontece na indústria, um vislumbre do que as mulheres costumam enfrentar.

Uma realidade diária

Novas histórias continuam aparecendo quase de hora em hora, e as mulheres da cena dos games e esports precisam enfrentar memórias doloridas. Isso inclui ser levada de volta a seus próprios assédios e às medidas que tomaram para se proteger na época. Os infinitos relatos e acusações levaram ao que muitos estão chamando de “momento #MeToo dos esports”, inspirado no movimento da indústria cinematográfica que expôs o gigante Harvey Weinstein. Aquele movimento começou em 2017, quando atrizes e outras mulheres da indústria do entretenimento usaram #MeToo para compartilhar suas experiências de assédio sexual e discriminação no ambiente de trabalho. Por causa das histórias que essas mulheres compartilharam, homens poderosos de várias indústrias perderam seus postos. E, devido à cobrança nas redes sociais, as empresas foram obrigadas a rever políticas discriminatórias de contratação e diferenças salariais.

Muitos homens da indústria dos esports reagiram às notícias com choque, horrorizados que aqueles homens com os quais conversaram, trabalharam e até fizeram algum tipo de amizade seriam capazes desse tipo de comportamento. Asmongold, criador de conteúdo de World of Warcraft, se juntou ao coro, dizendo que os abusadores “não acham que é abuso sexual, acham que é só mais um dia”. Jake “SirActionSlacks” Kanner, apresentador de Dota 2publicou um longo vídeo pedindo que a comunidade “não seja imbecil” e comentando suas frustrações com as ações de GranDGranT. E Malik Forte, ex-apresentador da Liga Overwatch, sugeriu que algumas mulheres aconselhassem os homens da indústria dispostos a ouvir em sua stream na Twitch.

Para os homens, o fim de semana foi uma avalanche de emoções que abalou suas visões de mundo e convicções de que a cena era um lugar seguro.

Para a maioria das mulheres da indústria, o final de semana foi uma confirmação pública de coisas que já sabiam. Os relatos que estão sendo divulgados agora devem ter sido sussurrados, como aviso, a amigas e colegas por muitos anos. Comentários discretos em eventos e mensagens particulares dizendo “não fique sozinha com ele em lugar nenhum” são até banais. As mulheres da cena de esports, particularmente as que já passaram por isso, sempre ficam de olho nas mais jovens e vulneráveis de nós a todo momento. É por causa dessas histórias que as mulheres nunca bebem muito em eventos, porque seriam acusadas de serem “irresponsáveis”. É por causa dessas histórias que as mulheres têm amigos que mandam mensagens se elas sumirem por mais de 15 minutos em eventos. É por causa das coisas assustadoras que aconteceram que toda mulher que você conhece se recusa a perder sua bebida de vista em um evento.

Essas acusações deveriam fazer com que muitos da indústria acordassem, especialmente os mais poderosos, que podem fazer mudanças reais. Mas é imprescindível que os homens entendam que nada disso é novidade para a maior parte das mulheres com quem trabalham, com quem conversam, e até as que amam. É uma realidade do dia a dia de mais pessoas que você imagina. Para os homens bem-intencionados que podem ter dificuldades para entender e tomar atitude, Jacinta Patricia “Jia” Dee, apresentadora de Hearthstonelistou e explicou como os homens podem ser aliados valiosos na comunidade de esports.

Artigo publicado originalmente em inglês por Liz Richardson no Dot Esports no dia 24 de junho.

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Jéssica Gubert
Jéssica is a writer, editor, and translator working at GAMURS since 2019, but with a lifelong experience in word games and TV shows. She can also be found at concerts or babbling about board games anywhere.